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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Clara Dawn, a double-face da crônica – Por Celso Moraes


Eis-me aqui para felicitar Clara Dawn por seus textos bem urdidos em Sofia Búlgara e Tabuleiro da Morte, livro de crônicas publicadas no DM Revista do Diário da Manhã. Engraçado que, à medida que vou escrevendo cada vez menos meus próprios textos – e sei que longe não está o dia em que cessarei por completo minha produção, por pura falta de resposta à pergunta “Para quê?” –, vou lendo cada vez mais os de Clara Dawn. E gostando. Creio que, na linha imaginária do tempo que tudo destrói, meu fim se entrelaçará à sua continuidade. Que seja.
   
Vamos às crônicas. Gostei imensamente de “O Chaplinesco”, o início “Perto, muito perto”, numa resposta ao clichê do “longe, muito longe”, tão comum e cansativo dos contos de fadas. A descrição minuciosa do cenário faz com que a gente “veja” o vilarejo com os olhos de nossa mente, e chegamos a acreditar – mercê do pacto de leitura – que tal lugar existe. Um lugar de antíteses, expressas aqui e ali, como na expressão “esgoto adentro e rio afora”.
 Interessantes as palavras derivadas do nome do criador do imortal Carlitos. O adjetivo “chaplinesco” e o verbo “chaplinescar” trazem à memória o andar bamboleante do inesquecível personagem, e eu cheguei mesmo a “vê-lo” na inglória luta com a sua sopa de sapato.
   
Singular vilarejo, que se permite o luxo de ter uma mini réplica da igreja parisiense de Val-de-Grâce; imagine-se a quietude e a tranquilidade desse lugarejo, um verdadeiro Vale da Graça, que só não é perfeito, apesar da ruína, porque ali “sempre chove”.
   
Trata-se de uma crônica/conto em que, mais importante que a ação, é fundamental a descrição do panorama e a construção psicológica dos personagens. O pedinte que “não usava botas de borracha e tampouco possuía um guarda-chuva” é um primor de criatividade, sentado na calçada a filosofar com a propriedade de um Rousseau. Seu vocabulário, erudito e rico, contrasta com a ideia que se tem de um mendigo interiorano. Mas, a bem da verdade, aqui mesmo em São Luís de Montes Belos há um sujeito maltrapilho que vaga pelas ruas e discorre com propriedade acerca de assuntos complexos, e outro que, a par de vender certo produto alimentício, aparentemente é um expert em Química, sabendo de cor a tabela periódica (!). Vida imitando a arte, e vice-versa.
   
O fecho do texto, o diálogo à primeira vista pleno de nonsense, encerra de forma incisiva o texto, deixando o leitor comum a se perguntar “que parte eu não entendi?” ou mesmo “há algo mais para se entender aqui?”.
    
Sobre o texto “A sombra da hora doze”, começo fazendo uma observação que, para os não-iniciados, poderia parecer estranha ou pouco lisonjeira, mas que é justamente o contrário: o título me lembrou o de um filme de terror, “A hora da zona morta”. Ocorre que o filme é um clássico, eu o adoro e revejo de vez em quando, e acho o titulo uma das melhores sacadas de todos os tempos em termos de títulos fílmicos. Ou seja, é o meu jeito torto de dizer que adorei o título dado por Clara àquela crônica tão intimista. Intimista porque trata de um momento pelo qual a gente passa e que encerra tanta ternura (e, não raro, sofrimento): remexer guardados, tranqueiras, velhas fotos. Identifiquei a “Tatá, tão pequenina, gorda e bochechuda”, na Thálita Miranda, hoje linda e certamente dona de uma personalidade interessantíssima, tendo puxado a mãe. Já do “Tuco”, o Arthur, não dá para não gostar de um cara que, em garoto, soltou pipas e as achava “a coisa mais linda do mundo”.
   
Há coisa de uns dois meses, fui dar uma arrumada nas minhas bagunças e dei de cara com um maço de cartas e cartões, amarrados com uma fita vermelho-paixão. Abri e me senti mal, ao mesmo tempo em que me senti bem e, ainda simultaneamente, engasguei com um bolo invisível na garganta. Eu que quase nunca choro, às vezes choro fácil demais.
   
Eram cartas e cartões de minha ex-esposa. A maioria, declarações de amor. Da maioria, eu nem lembrava. Nós dois, que acabamos por nos desamar aos poucos, será que realmente nutrimos tamanho sentimento, que ex colocou em palavras de forma tão espontânea? Uma delas chamou a minha atenção: depois de dizer que outras palavras seriam inúteis para expressar seu sentimento por mim, escreveu “eu te amo!” mil vezes (!), de forma manuscrita, uma a uma! Como pode ser que hoje não signifiquemos nada além de sócios na paternidade/maternidade de nossos filhos? Como mudamos tanto?
   
O que eu quero dizer com isso é que o texto “A sombra da hora doze” mexeu comigo. É isso, um texto literário deve inquietar o leitor. Obrigado, Clara Dawn por tê-lo escrito. Sobretudo o trecho “Como, pois, conceberemos a felicidade? Uma vez que esta se revela, tal qual a sombra da hora doze, e por estarmos sobre ela, nunca a enxergamos?”
   
Na crônica “Os gonzos do mundo”. Gostei do título. Mas, confesso, à medida que prosseguia a leitura, nas duas primeiras colunas, fui me desiludindo. Não gosto de chuchu – como “gostar” do que não tem gosto? Até etimologicamente é estranho. E, decididamente, a ideia da velhice se me afigura como o maior dos terrores. Algumas palavras, como a que Clara usou, “flácida”, levantam um vergão metafórico no meu rosto como se fossem chicotadas simbólicas. Aquela que foi uma das mulheres mais belas de nosso país, Tônia Carrero, disse que “a velhice é a prova maior de que o inferno existe, e começa aqui mesmo”. Concordo. A velhice me assusta. Mas a alternativa é igualmente aterradora. O antídoto para o envelhecimento, morrer jovem, nos priva de tanta coisa, mas, por outro lado, eterniza a pele livre de rugas e flacidez. Escrevo olhando para um pôster enorme de James Dean, na minha parede. Ele se foi jovem, deixou três filmes que viraram clássicos, e permanece na lembrança dos fãs como um eterno garoto. Rebelde, arrogante, belo e nem um pouco fã de tomar banho (será moda? Antonio Banderas, dizem, segue a mesma linha...).
   
Mas voltemos ao texto. O chuchu (ainda estava na segunda coluna) me desgostou a ponto de me fazer perder o apetite pelo bolo de fubá e pelo pão de queijo sobre a mesa descritos mais adiante na mesma crônica. Mas então, pelo menos para mim, a salvação veio na terceira coluna, com as divagações acerca da teia de aranha. Que figura, a teia! Trabalhei essa imagem em Filosofia com meus alunos, e é inesgotável o que se pode tirar dela. Para aumentar meu interesse, percebi uma palavra usada por Clara em nossas correspondências pessoais – “intencionalidade” – e a leitura se tornou, de súbito, prazerosa.
   
A quarta coluna já dá a dica de que algo não está certo, com a plantação sem cuidador. Mas, e Dona Penélope? Com cuidado, continuei a ler, detendo-me em cada palavra, virando-a do avesso, olhando embaixo dela, como quem busca uma nuance a princípio despercebida num objeto tridimensional. O verbo “vampirizar” fez correr pelo meu corpo uma descarga de agradável eletricidade emocional, os vampiros são as criaturas que eu mais amo, entre as supostamente fictícias. A sugestão de que Dona Penélope estaria “desatenta” revela que há algo mais ali. E, então, a gente descobre a razão de ser daquela crônica.
   
O Narrador não chorava pelo inseto acasulado. Tampouco chorava pela avó que se fora. Não choramos pelos defuntos que em vida nos foram queridos, no final das contas. Penso que choramos por nós mesmos, por nossa solidão, por estarmos presos a esta vida enquanto eles foram singrar os mares inefáveis do infinito. Na verdade, choramos mais por egoísmo do que por qualquer coisa. Parabéns, Clara Dawn, também por esse texto que só revela a verdadeira “intencionalidade” na última coluna, disfarçado entre insípidos chuchus e pés de arruda.
   
Na crônica “Não recebo mais visitas” de início, fiquei na impressão de se tratar de um amor, mas imediatamente me dispus a não cair nas armadilhas de Clara! E os olhos verdes remeteram-me de imediato ao verde daquele papagaio de outra crônica dela. Fiquei entre achar que se tratava de um homem ou de um bicho.
   
Mas conforme a leitura avançava, fui me convencendo de que se tratava de um macho da espécie humana. Clara soube me despistar, eu que já me encontrava na pista certa. Coisa de escritora que sabe o que faz. E quando ela disse que ele se sentou num canto da praça, visualizei a imagem de um sujeito de pele clara e olhos verdes sentado no banco da tal praça, sem que me ocorresse que ele estar sentado no canto da praça não quer dizer, necessariamente, que ele está sentado num banco! Caramba, ela me pegou, no final das contas ela me pegou...
   
No fim, não era um papagaio, nem um homem, mas um pit bull de nariz vermelho, que já virou marca de roupas e acessórios e capas de caderno. Entrego os pontos, pode abrir a champanha, Clara (ou o champanhe, champagne, como queira). Venceu-me, com sua pena oblíqua e dissimulada, como diria o Bruxo do Cosme Velho. Descobri que gosto mais do seu estilo do que achava que gostava. Gosto de ser surpreendido. Até mesmo enganado, no bom sentido. Gosto de te ler.
   
Em suma, faço como nosso saudoso Reynaldo Jardim: comparo Clara Dawn à imortal Clarice, mas principalmente pelo hermetismo. O que ela quis dizer, ou disse em Sofia Búlgara e o Tabuleiro da Morte? Eu interpretei de duas formas: uma, universal, dirigida a toda a Humanidade, e outra, lispectoriana, direcionada apenas a quem se sabe destinatário de cada crônica. E não sei se alguma dessas interpretações é correta, ou ambas, ou nenhuma. Mas gostei muito. Até aqui, tenho gostado de cada coisa que Clara Dawn escreveu. Agradeço pela oportunidade de ler essa autora e tecer modestas considerações acerca da mesma. Longe de mim fazer um arremedo de crítica literária, são meramente opiniões de um leitor “paisano” e encantado.

*Celso Moraes é professor de Língua Portuguesa na cidade de São Luís de Montes Belos