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sábado, 19 de março de 2011

Alétheia - de Clara dawn - por Edival Lourenço

Frederico o Grande, rei da Prússia, ainda no século XVIII, escreveu: Atira todos os preconceitos porta fora, e eles voltarão pela janela.
           
A considerar pelo romance da goiana Clara Dawn, não há um aforismo mais atual do que este. No microcosmo de Alétheia (palavra grega que quer dizer “verdade”), um grupo de pessoas, sensibilizado pelas vítimas de preconceito e discriminação de toda ordem, constitui uma ONG, com a finalidade de acudir pessoas carentes de ajuda nesta área. E neste mundo é que os fatos romanescos vão se desencadear num ritmo frenético, como costumam ser os fatos de nosso tempo. Quer nos romances, quer na vida real.
           
O charme deste romance, se não estou enganado, começa exatamente neste ponto. Porque as pessoas, ou melhor, os personagens, que se julgavam modernos, isentos de preconceito e discriminação, no desenrolar de seus atos, isto é, no desenvolvimento do romance, sem perceber, vão se enredando nos próprios preconceitos. Preconceitos estes de que elas julgavam ser isentas. E assim se percebem tão preconceituosas e discriminadoras quanto aquele viés da sociedade que pretendem combater.  
           
O personagem Vicente é o protagonista, o núcleo de onde tudo parte e para onde tudo converge. É o psicólogo, o idealizador e o presidente da ONG. É o mocinho que forma o par romântico e, ao mesmo tempo, o narrador. O que os estudiosos chamam de narrador autodiegético. Isto é, os fatos são percebidos do ponto de vista do protagonista, que é também o contador das próprias façanhas.
           
Vale lembrar que narrativa com este foco tem a vantagem de que suas palavras ganham foro de depoimento, de verdade sentida e vivenciada. No entanto, tem a desvantagem da limitação. Não seria verossímil narrar a própria morte, por exemplo, ou mesmo um estado passageiro de inconsciência. Embora Machado de Assis tenha conseguido superar essas barreiras em Memórias Póstumas de Braz Cubas. Tem ainda a desvantagem de parecer tendencioso, ou mesmo arrogante. Mas a autora soube tirar de letras as dificuldades desse modelo narrativo.
           
Ao redor de Vicente gravitam personagens da mais variada estirpe de neuróticos. De sujeito que vive com uma máscara de pierrô porque tem pudor da própria cara, a um serial killer da pesada que, por um trauma de infância, sai detonando garotas de programa, em Goiânia e região metropolitana, em São Paulo, no Parque Ibirapuera, e até em Massachussetes, nos Estados Unidos.
           
Outra virtude que vejo neste romance é a sua atualidade. Sua trama e seu drama são pertinentes aos dias de hoje. Não ao passado saudoso nem ao futuro remoto. Os personagens são homens e mulheres de carne, osso e silicone que perambulam pelos dias correntes. São solitários da multidão, fragmentados, estranhos a si mesmos, filhos de uma sociedade hedonista, cujo objetivo de vida se resume a consumir e descartar. Usar e abusar até a exaustão dos sentidos. Onde o mercado é o Deus e o Marketing o seu profeta.  
           
As pessoas não passam de bens cosméticos de fruição umas das outras e que podem e devem ser descartadas quando delas já se retirou o proveito imediato que se pretendia. A família é apenas um grupo organizado para o consumo. A criança, um fator de incremento do comércio e da indústria. A noção de e responsabilidade e compaixão é apenas resquícios de uma sociedade ancestral, agora traduzida em traumas, em sentimentos de culpa e ressentimentos. O sexo é quase sempre algo animalesco, desprovido de amor, de ternura, das amarras do bem-querer.
           
E o próprio grupo que constitui a maioria dos personagens pretende, em última instância, lutar contra este estado de coisas. Mas se encontram inseridos no sistema de tal forma que muitas vezes acabam sendo fatores de implemento das situações de preconceito e discriminação contra as quais eles lutam. É a força acachapante, o rolo compressor do sistema.
           
O leitor tem a oportunidade de se sentir retratado nas situações do romance. Retratado e visto com o mínimo distanciamento para se ver bicho esquisito de um tempo complexo e estranho. E se vendo tem a oportunidade da reflexão, de se postar contrário ao que, visto de dentro do problema, lhe parecia normal.
           
Para dar conta de retratar este mundo conturbado, que a bem da verdade o mundo em que vivemos, Clara Dawn se vale de uma linguagem convergente, intuitiva, onde são misturados ficção literária, filosofia, psicologia e até conselhos de tia. Tudo bem dosado, com leveza e graça, revestindo uma estrutura romanesca dinâmica de capítulos paralelos, planos e contra planos, ganchos e desenlaces, num jogo de mostra e esconde de prender o leitor da primeira à última página. A cada página uma surpresa. A cada capítulo uma revelação e, como tinha de ser, o estabelecimento de um novo enigma. Assim se estabelece um suspense com um misto de ânsia e delícia, fazendo com que não queiramos soltar o livro de jeito nenhum.
           
Não procuremos em Alétheia de Clara Dawn um romance do tipo convencional como Crime e Castigo de Dostoievski, onde vigora de ponta a ponta a noção de contrário senso. Ou seja, o narrador vai desenrolando as cruezas do mundo, do ponto de vista exclusivamente da maldade e o leitor, com sua cultura, com seu conjunto de valores firmado numa sociedade mais simples e estável, vai estabelecendo por sua conta e risco o sentido certo das coisas, os valores que devem ser cultivados e transferidos para as gerações vindouras.
           
Talvez, a verdade, é que vivamos numa sociedade complexa demais em que a noção de bem e de mal, de certo e errado, cada vez mais vai diluindo suas fronteiras, a ponto de que a narrativa que trabalha o seu discurso apenas pelo contrário senso esteja perdendo espaço para romances que misturem estes dois discursos: o senso contrário e o aconselhamento.
           
Certamente Alétheia está mais para a parábola moral, para romances como A Cabana de Willian Young, que no momento está na lista dos mais vendido na maioria dos países. Obra que ao invés de apenas mostrar o drama, sugere fórmulas de correção. Sem, no entanto, ser genuinamente um livro deu auto-ajuda. Daí, aquela tentativa nossa de definição no início desta resenha: linguagem convergente. Em Alétheia esses momentos de quase aconselhamento soam sem muita estranheza, mesmo em se tratando de um romance. Pois o protagonista é um psicólogo aconselhador e seus conselhos vêm no contexto do drama que, pela sua ação e pelo seu discurso, se desenrola.
           
Não é possível o leitor concluir a leitura do livro sem refletir de forma profunda sobre os temas propostos. O leitor sairá desta empreitada, no mínimo pensativo, com possibilidades de melhoria de sua noção geral de estar-no-mundo, da precariedade da condição humana.
           
Consciente dessas possibilidades, a autora arrisca uma brincadeira no final, quando escreve: “Fim? Não; recomeço!” Pois ela sabe que o leitor, agora mais reflexivo do que antes, pode recomeçar a própria história em melhores bases.

Edival Lourenço é o presidente da União Brasileira de Escritores de Goiás - Autor de Centopeia de Neon/prêmio Bolsa Hugo de Carvalho Ramos e já está na 5ª Edição. É considerado por muitos críticos literários como um dos melhores escritores da atualidade.

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