Há no mínimo curiosas similitudes entre os romances “O Cortador de Pedras” e “O Cortador de Hóstias”
Valdivino Braz
Especial para o Jornal Opção
Em
“O Cortador de Hóstias”, os fatos se narram por conta de três
personagens e por um narrador fazendo às vezes de autor do livro. O
romance de Clara Dawn é composto por quatro partes | Divulgação
A
escritora Clara Dawn traz consigo o dom da escrita, ou da escritura
literária. A letra ao pé da letra, a escrita escorreita e correta para
se narrar uma história e/ou tecer crônicas destacam os fios de seu
talento estético. Traz senso de leveza e medida, noção do que seja
subjetividade criativa, com sensibilidade poética. Sim, o cronista
enquanto poeta do cotidiano, além da reflexão sobre fatos corriqueiros
(ou insólitos) que se narram.
Cronistas
há que escrevem apenas pelos cinquenta ou não sei quantos reais por
crônicas de lauda e meia, algumas delas medíocres, para não dizer
intragáveis — qualquer coisa sem alma ou empatia com os temas. Por
excelência, cabe ao cronista sublinhar o contorno das coisas, o que elas
tragam de interessante. Captar a essência do banal ou mesmo extrair
alguma epifania das supostas insignificâncias, pois tudo significa
alguma coisa. Epifania ou insight no sentido joyciano — manifestações
súbitas, quer na vulgaridade do discurso ou do gesto, ou em uma fase
memorável da própria mente… “São os momentos mais delicados e
evanescentes” —, ou de captar a luminosidade e ser surpreendido pelas
“grandezas do ínfimo”, ao jeito do poeta Manoel de Barros. Mas aqui não
se trata de crônicas ou cronistas e nem de poemas, mas sim de romances.
Romancista,
contista e cronista — além de pedagoga, com pós-graduação em
Psicopedagogia —, Clara Dawn, com efeito, lavora no campo da literatura e
publica desde 2008, ao lançar seu primeiro romance, “Alétheia” — que,
em grego antigo, quer dizer verdade/realidade, ou, segundo Heidegger,
após análise etimológica do termo a-letheia: a- (negação) e lethe
(esquecimento): tentativa de compreensão da verdade/desvelamento. Ah,
como somos pernósticos!
“O
Cortador de Hóstias” é o mais recente livro de Clara Dawn, com o selo
da Editora Livres Pensadores, da qual a autora é diretora-executiva,
atuando também como produtora de conteúdo da revista “Raízes —
Jornalismo Cultural”, que tem como editor-chefe seu marido, o jornalista
Doracino Naves. Entre outros livros de Clara estão “Sofia Búlgara” e o
“Tabuleiro da Morte” (crônicas), ”Castelo de Bolso” (infantil) e “Arthur
o Grande Urso” (infantil).
Nuanças/sutilezas
e, contudo, a diferença. Não que se esteja ou queira aqui fazer — e já
fazendo — leigas especulações comparativas; instigante, todavia, a
humana curiosidade a certo cotejamento/confronto de semelhanças e
diferenças, similitudes, ecos ou ressonâncias. Venho de ler,
paralelamente, “O Cortador de Hóstias” (154 páginas), de Clara Dawn, e
“O Cortador de Pedras” (“The Stonecutter”, com 447 páginas), da
escritora Camilla Läckberg — sueca, ela tem romances policiais,
best-sellers, traduzidos para 35 idiomas e vendidos em 50 países.
Camilla
Läckberg assina obras como “A Princesa de Gelo” (2003), “Gritos do
Passado” (2004), “O Estranho” (2012), “Os Diários Secretos” (2007), “A
Sombra da Sereia” (2008) e, dentre outras, “O Faroleiro” (2011) — as
datas se referem aos anos de publicação na Suécia —; algumas delas
traduzidas e publicadas no Brasil a partir de 2010. “O Cortador de
Pedras” (“Stenhuggaren”, em sueco) foi publicada em 2005, na Suécia, e
apenas (que saibamos) em 2011, no Brasil.
É
de se notar que, segundo declarações de Clara Dawn à imprensa, “O
Cortador de Hóstias”, primeiramente com o título “O Vale das Quimeras”,
se iniciou em 2010, ambientado em Ouro Preto (MG) e no ano de 1975. Nas
palavras da autora, era para ser um livro com três contos longos,
aparentemente distintos, mas que traziam a lume a mesma história,
narrada por diferentes personagens. A história girava em torno de uma
suposta sucuri, no Vale das Quimeras, que, em noites sem lua, arrastava
crianças para o fundo do rio, após abusar delas sexualmente. (Nada a ver
uma coisa com outra, mas as coisas umas às outras se levam, como nos
leva a sucuri, por analógica digressão nossa, à Anaconda mostrada pelo
cinema ou a Yara?).
Senão,
vejamos: sobreditos romances sob um certo rastreamento. Em 2010, Clara
escrevia “O Vale das Quimeras”. No ano seguinte, 2011, “O Cortador de
Pedras”, de Camilla Läckberg, saía publicado no Brasil; e, já em 2012, o
romance de Clara Dawn, em andamento, sofre uma guinada após a conversa
da autora com um amigo, que lhe apresentou a máquina de cortar hóstias.
“Pronto! Fiquei louca pela ideia de dar voz ao meu assassino de
crianças”, palavras de Clara à imprensa. E assim mudou-se o título do
romance para “O Cortador de Hóstias”, e mudou-se o locus, de Ouro Preto,
em Minas Gerais, para a Pirenópolis de 1918, em Goiás.
A
autora, provavelmente, se baseia num antigo aparelho cortador de
hóstias, que funcionava manualmente, por meio de prensagem e corte. Ao
que se sabe, a hóstia é feita com farinha e água. A massa da hóstia —
com os ingredientes misturados numa prensa quente — resulta no pão
ázimo, o “Corpo de Cristo” dos católicos, sendo este cortado em vários
tamanhos. Com a massa já prensada e seca, colocada na superfície do
mecanismo de ferro afixada sobre a caixa de madeira do cortador,
processava-se o corte e as hóstias iam caindo na gaveta do aparelho.
Consta
que as aparas, sobras ou retalhos de hóstias, cheios de círculos
perfurados, serviam para alimentar porcos. Meio herético ou profano,
isso, não? No passado, recortavam-se as hóstias até com tesoura.
Atualmente, indústrias com tecnologia moderna atendem à demanda de
hóstias, com data de validade que varia de oitos meses a dois anos.
Mas,
sim, prosseguindo com nossas conjecturas, o título do romance de Clara
Dawn, “O Vale das Quimeras”, foi então substituído por “O Cortador de
Hóstias”. Pois bem. Por suposto que Clara, nesse ínterim, entre 2010 e
2011, teria lido (ou não?) o romance de Camilla Läckberg, podendo então
que o título de seu romance se tenha como ressonância de “O Cortador de
Pedras”. Ou então Clara não leu o romance sueco e tenha apenas se
espelhado no título de Camilla? Ou nada disso e simplesmente porque as
ideias estão no ar e o novo título do romance tenha vindo ao contato de
Clara com o aparelho cortador de hóstias? Não checamos isso com Clara;
optamos pelo risco de exercitar a humana curiosidade e nossas (talvez
improváveis) considerações.
Corrija-nos,
a autora, se aqui estivermos alicerçados apenas em leigas e meras
suposições, até porque “literatura comparada” (ou lá o que seja) não é
nossa especialidade — para isso (abre indelicado parêntesis) temos por
aí os mestres abalizados, ainda que entre eles haja algum bípede
enfunado, atarracado na arrogância do saber e segundo o qual, com suas
idiossincráticas e acintosas indiretas, quase tudo que se escreve em
Goiás, no campo da literatura, é ruim. Crítico de quinta coluna, de
bastidores e boicotes. Mal sabe do que sabemos, em nosso parco saber,
até por bocas de Matildes, e do que guardamos para mais tarde, antes do
advento do Apocalipse, com o asteroide em rota de colisão com a Terra.
Haverá palmas e risos, choro e ranger de dentes. Antes disso, nada se
conta, mas acrescentam-se dois pontos: era uma vez um enfunado,
ensimesmado sapinho, que foi indo e mais se enfunou, até que, num belo
dia, cheio de si, se arrebentou. (Fecha parêntesis.)
De
passagem — e teremos que reler o romance de Clara, o que seguramente
faremos, seja pela estrutura do romance, pela técnica literária da
autora, pela linguagem e suas imagéticas, pela densidade das personagens
ou pela escabrosa atmosfera do romance, enfim —, não vimos bem, na
personagem Flor Maria, uma Benedicta Cypriano (dita Santa Dica, ou
Dindinha) às avessas, conforme declaração da autora. Nem seria mero
esboço nesse viés ao avesso da messiânica Benedicta, um fato dos anos
1920, ao passo que a história do cortador de hóstias se ambienta em
1918, dois anos antes, portanto. E não é esse o eixo do romance “O
Cortador de Hóstias”. De resto, o que sabemos?
Quanto
às ressonâncias, nem há por que se encrespar, são naturais em muitos
escritores (em nós mesmos, admitimos), inclusive na crítica, nos contos e
romances dos próprios críticos (inclusos os sapinhos). De mais a mais,
não se é dono das palavras, são elas de domínio público, não exclusivas
deste ou daquele autor, salvo quando elas expressam, nítida e
inconfundivelmente, a forma ou estilo peculiar, inerente e criativo, ao
jeito de quem as formula de modo original. Peculiaridade essa, aliás,
passível de se tornar clichê estereotipado em mãos de terceiros e até
banalizar e diluir autoria de ideias originais — daquele outro autor, e
não de quem delas se apropria, usurpa, repete/redunda ou “mimetiza”, até
de forma involuntária (pois sim!), senão que desatento ou
automaticamente traído pelo inconsciente. Orai e vigiai-vos, diríamos.
Ou melhor: vigiemo-nos. Numa escala classificatória de autores, Ezra
Pound distingue os “mestres” (os melhores) dos apenas “bons escritores,
sem qualidades proeminentes”, e distingue dos “inventores”, os meros
“diluidores”, que não vão além de suas limitações, parcos recursos,
mediano intelecto.
Algumas
ressonâncias de supostas leituras (ou nem se trata disso) encontramos,
de forma indelével, no novo romance de Clara Dawn. Ao “cortador de
hóstias”, ela apõe como epíteto “o filho do diabo”, que nos lembra um
título de Bukowski, e mais adiante se refere a “anjos e demônios”,
ecoando romance da “onda” Dan Brown, além de dar a perceber também uma
sombrazinha de influência do escabroso de pelo menos um ou dois
conhecidos autores goianos, que, por sinal, já “contaminaram” prosa e
poesia em Goiás, até de críticos sapinhos.
Comparativamente,
há elementos e claras similitudes ou similaridades ou semelhanças
(apraz-nos encadear sinônimos e aliterações) entre as estruturas e
atmosferas de ambos os romances. A propósito, e por mais exemplo entre
muitos outros “naturais” (como dizíamos), lendo-se o romance “A Mulher
de Costas”, de Marcia Tiburi, vai-se “ouvindo”, repetidamente, que a
personagem Maria José é “nascida e renascida”, adendo este que ressoa
parte homonimamente intitulada no inventivo e fascinante romance
“Avalovara”, de Osman Lins, em que este qualificativo (“nascida e
renascida”) se aplica a uma de suas personagens.
Já
o título “O Cortador de Pedras”, alusivo a um cortador de blocos de
granito e escultor, não nos parece adequado a toda a trama do romance de
Camilla Läckberg, salvo que por algum sentido metafórico que nos tenha
escapado. Durante a leitura, fica-se focado na expectativa com esse
cortador de pedras — espécie de elemento a pretexto de toda a trama —, e
meio que se frustra o espectador com as revelações (maestria de
Camilla), embora já viéssemos (dedutivos psicossensores) com nossas
suspeitas, recaindo sobre o verdadeiro assassino,
como
se confirma. (Ainda nos anos 1950, quase 1960, em Uberlândia/MG,
influídos pelas histórias de crime, mistério e suspense, meio que
iniciamos ou intentamos um curso de detetive particular, por
correspondência, com o renomado professor Bechara Jalkh, do instituto
que leva seu nome, sediado no Rio de Janeiro; e até ajudamos a polícia
civil de Uberlândia nas investigações e prisão de uns golpistas e
maconheiros que se hospedaram na pensão de nossa tia Rosa). O cortador
de pedras, na verdade, não vem a ser o centro ou eixo na trama da
escritora sueca, e não se conecta senão como involuntário leitmotiv
(motivo condutor ou de ligação) com os fatos que ocorrem em Fjälbacka,
pequena e idílica cidade, onde a própria Camilla Läckberg nasceu. O
assassino aí se move por razões bem mais profundas, em traumas de
infância enraizados no fundo do tempo, logo pertinentes ao campo da
psiquiatria.
Assassinato
da menina Sara (entre outros), rede de pornografia infantil,
pedofilia, abusos sexuais e suicídio, conflitos de vizinhos,
espancamento de mulheres, adultério, esposas infelizes, abandono de
filhos, planos de vingança, atos escabrosos e culpas do presente e do
passado (entre os anos de 1924 e 1962) vão surgindo na trama de “O
Cortador de Pedras”, com o crime investigado pelo detetive Patrick
Hedstrom. Algo similar, em aspectos, se dá no romance de Clara Dawn. No
aspecto das revelações finais, é menor o impacto no romance de Clara
do que na trama de Camilla Läckberg, típica autora de best-sellers, com
obras propícias ao cinema (e o de Clara Dawn também, por que não?),
como, aliás, força do gênero, parece ser o destino de certos
best-sellers.
Estrutura,
técnica narrativa, atmosfera, densidade, personagens e sondagens do ser
humano. Semelhanças entre os dois romances em foco, com as respectivas
diferenças que os sustêm e distingue. Em “O Cortador de Hóstias” os
fatos se narram por conta de três personagens e por um narrador fazendo
às vezes do autor. O romance é composto em quatro partes, a começar pela
personagem Flor Maria, tomada pelo ódio e desejo de vingança por causa
dos traumáticos abusos sexuais sofridos na infância. Outra parte mostra o
reverendo Venceslau que escreve cartas, jamais enviadas, para sua amada
(Flor Maria) supostamente morta. Cartas dentro de uma caixa que esteve
enterrada durante anos, e uma delas guardando segredo que será
oportunamente revelado. A terceira parte corre por conta do narrador que
vai alinhavando toda a trama do romance, e para o qual “coisa alguma é o
que parece ser”. Já numa parte à parte (ou quarta parte), ganha
autonomia narrativa um suposto cortador de hóstias, molestador de
garotinhas e que, em depoimento ao delegado, busca inocentar-se do crime
de morte das crianças. Inocentes indefesas, que teriam sofrido abusos
nos fundos escuros da bestialidade, onde o vulto monstruoso insinuava-se
à luz de lamparina.
Assim,
“O Cortador de Hóstias” constitui um quebra-cabeça de variadas visões, e
nele o escabroso se abre com um cheiro de querosene (a lamparina),
frutas em decomposição e odor de chiqueiro. Ao longo do romance, vão se
folheando abusos sexuais cometidos pelo cortador de hóstias contra
meninas negras, abobalhadas, com algum defeito físico, abandonadas pelos
pais ou vendidas para serem exploradas sexualmente. Assassinato de
crianças e até um incêndio na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário,
como realmente ocorreu, em data mais recente, em Pirenópolis. Há no
livro messiânicas religiosidades e intentos de suicídio coletivo por
parte do reverendo, meio que ao modo de Jim Jones, na década de 1970, na
Guiana, próxima à fronteira com a Venezuela — e seria por aqui, talvez
(não por Flor Maria), o avesso dos objetivos de Santa Dica, a Benedicta
de Lagolândia, um povoado de Pirenópolis. E o romance revela,
finalmente, uma Flor Maria que, dada como morta, retorna, vinte anos
depois, para se vingar. Mestria de Clara Dawn.
Por
sua vez, “O Cortador de Pedras”, de Camilla Läckberg, se abre com a
morte da menina Sara, que um pescador de lagosta descobre ao puxar sua
rede com a pesca do dia. O suposto afogamento acidental, no mar, cai por
terra quando a autópsia revela que a água encontrada no corpo da menina
não é salgada e possui traços de sabão, o que leva a suspeita de um
assassinato em Fjällbacka. Adiante, se descobre que Sara foi
criminosamente afogada na banheira de sua casa, inclusive sendo forçada a
engolir uma certa quantidade de cinzas. Coisa macabra, pois se trata de
cinzas dos mortos, de pessoas assassinadas pelo principal suspeito, e
pelo mesmo carbonizadas numa casa propositalmente incendiada.
Similitudes elementais, como se vê, entre um romance e outro, além da
proximidade de datas em que ambas as tramas se iniciam: em 1924, os
fatos do romance de Camilla; em 1918, os fatos narrados por Clara. A
exemplo, enquanto no romance da autora sueca se fala de uma reveladora
caixa azul com as cinzas dos mortos, no romance de Clara Dawn há uma
caixa de cartas, entre elas um envelope carmim com a carta secreta e
reveladora. Coisas assim e algo mais, comparativamente paralelas.
Ao
fim, longe de nós o intento de subestimar (antes, atestar) o dom de
Clara com a literatura, autora e obra que temos em boa consideração, e
podendo até que, a outros pretextos, só estejamos aqui a nos exibir (ah,
meu Deus, outro conto de sapinho?) como leitores inveterados e atentos.
Aos críticos e teóricos do assunto, a tarefa da análise aprofundada e o
abalizado esclarecimento. A nós, particularmente, que transitamos mais
pela superfície da matéria, e antes alicerçados na diferença do que nas
supostas ressonâncias, nada temos que desabone “O Cortador de Hóstias”, o
qual realmente apreciamos e cuja leitura recomendamos. Leiam o novo e
envolvente romance de Clara Dawn.
Valdivino Braz é jornalista e escritor.