Assombro. É o gran
finale. Um tutti em que, na
música, todas as vozes, ou linhas melódicas, se ajuntam, ou todos os
instrumentos entram para que, na cadência final, tudo se acabe e o silêncio nos
toma, como que desprevenidos, com a respiração retida. Mas que, nesse livro de
Clara Dawn, nesse O Cortador de Hóstias,
onde o profano submete o sagrado, parece não ter fim, como o acordar de um
sonho que nem é sonho e nem é realidade. E fica-se, sentado no leito, a indagar
para a escuridão, o que foi fantasia e o que foi a vida mesma na sua concretude
cruel. Aparência ou verdade? Vai se saber...
A obra mais se assemelha a uma fuga, em moto perpetuo. Seria nos moldes da Arte da Fuga de Bach? Será? Dúvidas não
nos vão faltar, como nos intrincados contrapontísticos bachianos que, geniais,
tiram beleza da complexidade, ou de um aparente tumulto. E destarte vai o
narrador, como sujeito elíptico,
desenvolvendo a narrativa em ‘primeiras pessoas’, como se fossem linhas
melódicas unindo-se e se separando, tendo ao fundo uma ‘terceira pessoa’, o
narrador que, vez por outra, como uma espécie de corifeu, ‘pula para dentro do
drama’. Entretanto, não vai passar despercebido ao leitor atento que uma
das ‘primeiras pessoas’ é justamente o cortador
de hóstias. E a sua história é uma espécie de baixo continuo, um pedal de
órgão, aquilo que em harmonia dá substância aos harmônios, sons que são ‘irmãos’ ou ‘primos’ de dados sons fundamentais. E isso, por certo, funciona,
como uma espécie de leitmotiv, motivo
central, que trabalha dando unidade à obra. A voz do cortador de hóstias vai como que costurando a trama polifônica do
conjunto de vozes em ‘primeiras pessoas’.
Não é fácil escrever um romance, ou conto, em
‘primeira pessoa’. Essa forma traz, por vezes, dificuldades. Como tratar
sentimentos, ou impressões, de ‘outros’, que não o narrador, em ‘primeira
pessoa’? Mas Clara Dawn resolveu o problema narrando em diversas ‘primeiras
pessoas’. O que contribuiu, como forma polifônica, para a densidade da
exposição.
Balzac e Stendhal, quando precipitam a trama
dramática, “não param nem para colher uma florzinha, na beira do caminho”. Não
há pausa possível. O fôlego é retido. Não se olha para trás, nem para admirar a
paisagem, ou para se ver longe o horizonte. Nada. Os passos são imperativos. A
imagem não é minha. Confesso que, uma pena, perdi a referência. Eles vão como
os rios tumultuosos que descem as montanhas, levando tudo de roldão pela
frente. Balzac o faz geralmente após os seus coups de théatre, as reviravoltas que mudam o curso, o ritmo da
narrativa e... os destinos das personagens.
E em meio a esses destinos está a condição da
mulher, tema que funciona como uma espécie de argamassa que cola os lindos
pedaços de vidros multicolores de um vitral caleidoscópico, que joga a sua luz,
que vem do sol, nos espaços escuros das catedrais. Partes soltas de cores que
são como que unidas pela beleza, ou amor, que
derramam o seu calor sobre lajes cinzentas e frias. Ali está a brutal
desigualdade que ainda imperava, entre nós, mesmo nos princípios do século XX.
Mulheres vendidas por pais. Às vezes por eles abandonadas. Qual a diferença?
Jogadas no mundo da existência. E aí? O que lhes restaria senão o corpo frágil?
Um corpo seu? Será? Para se dizer o menos. Por séculos, as mulheres, inclusive
as belas, por mais razões ainda, foram usadas para selarem alianças de
dinastias entre reis coroados e senhores da guerra. Interesses de Estado. Que o
diga Henrique VIII da Inglaterra. Uma democrática Inglaterra que somente em
1918 iria reconhecer o direito das mulheres ao voto. Por aqui, isso se daria,
não muito mais tarde, em 1932. Se o mundo era ruim, que o digam os homens...
O Cortador de
Hóstias conta a história, algo trágico, de uma dessas mulheres. Cecíla Meireles dizia que cantava porque existia e
porque era poeta. Cora Coralina cantava dizendo que os seus versos tinham o
peso do machado. Nhanhá do Couto encheu os nossos gerais e veredas com a
música do seu piano francês trazido para Goiás em carro de bois. Belkiss
Spencière e Glacy Antunes continuaram a sua obra, ensinando os jovens, e inundando
a nossa Goiânia com a música dos grandes mestres. Aqui... aqui mesmo, nas quebradas da Grande Floresta. Elas deram o seu recado. O de Clara Dawn também
está dado.
Mas, e o assombro? E o gran finale? O assombro aparece após o penúltimo, e grandioso, coup de théatre. O rio tempestuoso da
narrativa leva margens, pedras, matacões e troncos nos seus rodamoinhos. E, num
repente, estamos extáticos como no fim do Grande
Sertão – Veredas de Guimarães Rosa, ou do fecho de O Tronco de Bernardo Elis. A respiração está retida. Assim mesmo
como ficavam os assistentes de Romeu e
Julieta, e de Otelo, de
Shakespeare, no Globe Theatre, em
Londres. Descobrimos, então, a verdade do que dissera o desesperado e impotente
Marke, em Tristão e Isolda, de
Wagner: “o mal anda mais rápido do que o
bem”.
No último golpe de teatro, um verdadeiro deus
ex-machina, que parece, não descer dos céus, mas, provir do inferno, na voz
do corifeu, não sabemos se estamos
diante do sonho, da fantasia, da loucura, da quimera, ou da nua e seca
realidade. Onde estariam as fronteiras disso tudo? E o tempo? Qual seria o
tempo? As aparências tomam conta do real? Elas seriam a verdade? Mestre de
palco! Pano de boca!
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