Fonte: Portal Raízes
A Tinta Infernal de Clara Dawn - Por Mário Jorge Bechepeche
Em
Clara Dawn não se exaurem nunca as modulações e acrobacias
transformistas que dão ao texto um revoante cenário de abstrações e
múltiplos rituais expressionistas.
Na
abrangência generalizada de suas publicações anteriores, rastreiam-se
conotações que podemos alinhar em itens que vinham aflorando em crônicas
e romances: capacidade ilimitada de reformular a estrutura convencional
de muitas figuras de estilo, como faz com a metáfora, amplificando-a
linguisticamente.
Dessa
maneira comparativa entre duas palavras, como é a forma usual, ela cria
primeiramente um enovelado de ideias que levam o leitor a sugestões e
expectativas de inúmeras imagens já admitidas antes como definitivas em
suas intenções sugeridas, mas o arremate do texto, em contraponto a tudo
que se estabeleceu, culmina num fecho de ambivalência, de paradoxo
surreal, às vezes levando, isto sim, o leitor a um solilóquio
desconcertante e inusitado.
A
versatilidade, que é o seu fundamento principal e que resultaria na
pletora mirabolante de estesias em “O Cortador de Hóstias”, irrompe
também adotando Chaplin como símbolo e patrimônio canônico de arte
trêfega e multivária.
Passa
sua prosa nos moldes de narração contrapontista e de incursões
incompletas definidas de um romance entre ensaísmos literários de
psicologia, mesclado de lances policialescos figurados. Atenta-se que
este gérmen, agora em afloramento, geraria um fantástico e inédito (na
literatura brasileira) parâmetro literário, como foi criado em “O
Cortador de Hóstias”.
Clara
Dawn tem a primazia do circunlóquio elaborado com exclusiva chancela
pessoal, que se distingue, neste item, de Joyce, Proust e Virginia Woolf
(aproximação, aliás, elegantemente expressa em “Um olhar estrangeiro
sobre a obra de Clara Dawn”, na crítica hiperconsciente de Fátima
Santana (Portugal) e endossada por Reynaldo Jardim, que a nomeou como a
Clarice Lispector de Goiás. Isto porque a incursão desses fatores na
técnica de monólogo interior em 1887 com “Les lauriens Sont Coupés”, em
Joyce, por sua impetuosidade criadora, se faz em torvelhinho de
entrechoques fráseos, em Proust, se conduz o fluxo subjetivista dentro
da caixa craniana do leitor e em Virginia Woolf os objetos se pulverizam
em abstrações da sentimentalidade.
Já
em Clara Dawn, esta escrita automática é revestida de outras dimensões
que a formam e a fazem rica de facetas porque a autora converge na sua
trama, com sutileza de prestidigitadora, arrebanhamentos e fractais,
como se transplantados e arrolados de outras fontes, além de evolver a
narrativa também em contrapontos, os quais ainda resultam em efeito que
será focado mais adiante, criadores de uma característica literalmente
inédita na ficção policial. É óbvio, ainda, que a criptografia é da
essência subjetivista desse fluxo de pensamento que ,assim condimentado
por todos esses ingredientes em fusão no texto, personalizam a exclusiva
modulação estética de Clara Dawn. Aliás, salta aos olhos a reformulação
estilística a que se obrigou com a faiscação merídia da linguagem em
processo de eurritmia da frase, no cadenciamento da sonoridade vocabular
pelo repique fonemático de feliz harmonização, construindo-se um dos
esteios de estilização em um texto que usa uma estrutura estetizante
múltipla de facetamentos. Estes, por exemplo: nas páginas 15 e 46, a
fusão do imagético ao organoléptico aromático consegue aquela proeza que
Manuel Bandeira fazia recender em seus poemas, que, segundo Agripino
Grieco, tinha o cheiro de carne feminina. Na página 25, usufrui da
oralidade goiana e cria um capitoso naco escritural que nada deve aos
soberanos e insuplantáveis textos de Bernardo Élis.
O
realismo fantástico que repercute ao longo do romance ganha matizes
dissímeis do modelo clássico. Este, geralmente, em fantasias
lantejouladas e alegorizadas, mas quase sempre narradas somente pelo
autor. Enquanto que “O Cortador de Hóstias” revela um tríplice
artesanato de acrobacia escritural: o autor, um narrador e a própria
personagem incrivelmente tramam o texto. Não há como não dizer uma
genialidade arisca e esquipática de Clara Dawn... pois consegue esta
mixagem com um conglomerado de fundamentos da estilística: torvelinha a
linguagem e as imagens, surde criptografias e técnica operatória, desata
o fluxo de consciência libertária libertina por uma escritura com e sem
sequência (contrapontos), fragmentária e interrupta, encadeando o
natural com o sobrenatural etc. etc.
Entretanto,
não é só este aspecto remodelador do tipismo padrão do realismo mágico
que a maleabilidade transliterante de Clara Dawn irradia: também
comparece o caráter clássico desse cânone estético nas páginas 23, 49 e
50 (alguns exemplos são Balzac, Erico Curado, Veiga Vale, aqui
respectivamente tornados ficção), além disso ainda ressoando
características que o universo inesgotável do realismo fantástico
propicia, a descrição em que aparece o natural difuso no sobrenatural
compõe imagens de martírio rembrandtdantes nas páginas 40 e 57, sendo
esta última um medalhão surrealista em pavor e tintas infernais a la
Dante Alighieri.
Nem
o ensaísmo literário faltou no elenco de simbolizações, uma vez que “O
Cortador de Hóstias”, a partir da página 110, ensancha a dolente
atmosfera do romance para focar o patrimônio histórico de Pirenópolis. É
óbvio que o livro não é um gênero literário do tipo romance policial.
Contudo, pelo seu excepcional dispositivo temático-escritural, pelas
ações esquipáticas da personagem central, pelo eixo contrapontístico dos
capítulos (o que é o suporte fundamental do policial legítimo), indo
tudo confluir em desfecho típico de estrutura detetivesca, compulsa uma
fantasmagórica encenação de sherlockismo estético que nos leva a afirmar
que Clara Dawn criou o policial mental. Neste torvelinhoso painel
imaginário de “O Cortador de Hóstias”, a ascensão estilística atinge
várias vezes a dimensão de página antológica com sagaz paleta descritiva
de paisagem feérica em ouro e luz... e Clara Dawn fulgura
incontestavelmente como consagração de primeira linha na ficção
nacional.
Mário Jorge Bechepeche é médico e crítico literário.
“O Cortador de Hóstias” é o oitavo livro da escritora Clara Dawn*, sendo o terceiro na categoria romance.
É
ambientado em Pirenópolis, Goiás, em 1918, e a história é contada por
três narradores-personagens e um narrador-observador.A trama se divide
em quatro partes: a primeira se desenrola segundo a visão da
protagonista, a vingativa Flor Maria, possuída pelo ódio por causa dos
abusos sexuais sofridos na infância. Ela elabora um plano para matar o
seu algoz.
A
segunda parte é epistolar, na qual o personagem Venceslau escreve
cartas, jamais enviadas, para sua amada morta. O “reverendo Vence” é
seguido por um grande séquito que o adora e é por ele adorado, mas até
mesmo no paraíso há serpentes.
A
terceira é a narrativa do observador, aquele que julga os atos dos
personagens segundo a influência que cada um deles sofre. É possível que
o narrador-observador possa também se emocionar e se injuriar,
precipitar-se e até mesmo enlouquecer diante das premissas dadas,
perdendo-se, assim como os personagens, entre realidade e divagações.
Para o narrador-observador, coisa alguma é o que parece ser.
A
quarta parte é descolada das narrativas: o suposto cortador de hóstias,
num diálogo invisível com um delegado, tenta justificar seu estranho
hábito de bolinar garotinhas.
Trata-se
de um romance envolvente repleto de mistérios, suspense e até momentos
que vão do hilário ao desconfortável em mais de um sentido. Reflete a
influência do sincretismo religioso vigente na época e das lendas da
história de Pirenópolis. A personagem principal é uma espécie de Santa
Dica às avessas. Em todo o processo narrativo, é possível encontrar
traços da Prima Bete de Honoré de Balzac. Até mesmo os nomes da maioria
dos personagens são tributos ao escritor francês, como o cavalo Melmote
Apaziguado, o mendigo Onagro e a cafetina Valéria Marnefe.
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